segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Panthera tigris

Quem me conhece, sabe que amo os animais; afinal, esse é um sentimento que não consigo manter escondido. Eu gosto de bicho e pronto. Equivocadamente, o caminho natural para as pessoas que gostam de animais é estudar biologia ou veterinária.
Eu passei a minha infância acreditando que faria veterinária. Aliás, minha infância e uma boa parte da adolescência. Mas um dia me dei conta de que os cães morrem. Aí, acabou de vez a minha disposição para a medicina veterinária.
Mas tinha uma segunda opção, bastante plausível para alguém que passou a infância assistindo ao Mundo Animal. Afinal, não poderia haver vida melhor que a de ‘fiscal da natureza’! Fiz então vestibular para ciências biológicas.
Resumindo bem a estória, a biologia me deu muito – alergias e decepções! É bem verdade que tive oportunidade de conviver com animais que, se não fosse estudante de biologia, jamais teria proximidade; mas o ser humano sempre me decepcionou, e os biólogos, mais ainda.
Mas isso tudo é conversa fiada, não estou aqui pra falar de gente...
Estou escrevendo para falar de um tigre. Ou, melhor dizendo, estou escrevendo para falar do mais intenso encontro que tive em toda a minha vida! Aconteceu assim:
Enquanto estudante de biologia, tive a oportunidade de estagiar na Fundação Rio Zoo. Imagina, aquilo é uma loucura: leões rugindo o dia inteiro, você olha pra um lado e vê serpentes, para o outro e vê aves de rapina, alimenta jacarés, assiste ao parto de cabritos anões, dá água para os chimpanzés e orangotangos, deixa o macaco-prego ‘catar piolho’ em você, dá mamadeira pro filhote de tigre, brinca com a lontra, faz carinho no lobo-guará... Enfim, as experiências não param; é um turbilhão inesquecívei! E eu só fiquei lá por dois meses!
E esse período foi justamente no começo do outono, acho que foram os meses de abril e maio, se não me falha a memória.
Eu fui estagiar com répteis. Aliás, na biologia, trabalhei com répteis. Eu trabalhava justamente com os bichos dos quais ninguém quer chegar perto: serpentes e jacarés; eram os meus preferidos. As tartarugas são muito legais, e os lagartos, uns tremendos e completos chatos! E foi justamente por causa das tartarugas que tudo aconteceu.
Bom, lembre que era outono, a temperatura estava baixa, pelo menos para os répteis. Nós tínhamos, no reservado, uma série de filhotes de tartaruguinhas de água doce, várias espécies. Eram espécimes apreendidos pelo IBAMA, e depositados na Rio Zoo. E a nossa função era, na medida do possível, manter as lindinhas vivas, até que o querido IBAMA desse um destino a elas.
Nessa idade, esses animais têm uma preferência por carne, precisam de proteína; então, pegávamos, todos os dias, na cozinha dos animais, um punhadinho de carne crua pra alimentar as pequenas. Mas, era outono, elas até que se esforçavam e comiam um pouco, mas sempre sobrava carne. E nós tínhamos que dar um destino à sobra, pois os animais só comiam carne fresca. Logo no meu primeiro dia, a menina com quem eu trabalhava me mandou dar a sobra da carne pra Penélope. Obviamente, perguntei a ela quem era Penélope, e ela me respondeu que era a puma. Legal, e onde fica a puma, perguntei. Então ela me disse que não sabia, para que eu a procurasse no reservado. Legal, saí para procurar uma puma no reservado. Passei pelo queixada, uma criaturinha bastante antipática e, logo no segundo recinto, eu o vi... E era lindo!
Primeiro, foi o choque – os recintos do reservado não têm barra de segurança, então ele estava, literalmente, do meu lado; entre nós dois, apenas uma grade.
Aqueles olhos laranja ainda habitam meus sonhos – acho que não existe nada mais lindo na face deste planeta!
Ele me olhou, com uma certa curiosidade, ‘o que essa criatura mundana está fazendo aqui’, e eu estava pasma com a beleza dele, com aquela fleuma de tranqüilidade, apesar de estar em um recinto de zoológico. Então, ele sentiu o cheiro – de sangue, de carne, dos pedacinhos de carne que estavam na minha mão; e aí levantou. Aquela criatura não parava de crescer diante de mim, os olhos ficaram na altura dos meus! Ele era lindo, e enorme!
Bom, ele sentiu o cheiro da carne, e ele queria a carne. Ele olhava para a minha mão, e retornava o olhar para dentro dos meus olhos; e eu olhava os olhos dele, e o cadeado que trancava o recinto – aquele cadeado não agüentaria a força daquela criatura! Era só ele forçar um pouco e adeus eu!
Respirei, tentei ficar calma, afinal, bicho sente o cheiro de medo; abri o embrulho da carne, e ele não tirava os olhos das minhas mãos. Aí, me dei conta de que os pedaços de carne eram muito pequeninos; como eu faria para dar aquela carne para o tigre? Com certeza eu não iria arriscar os meus dedinhos dentro das grades daquele recinto. Só me restou uma opção – joguei um pedacinho pra ele... Um pedacinho de carne que bateu naquele nariz imenso e caiu no chão, óbvio. Daí, aquele animal de 150 kg mostrou que não é nada mais que um gatinho: ele pegou a carne no chão, que era tão pequena, e ele, tão grande, que só conseguiu segurar com os lábios; ele levantou a carne, apoiou na pata – igual a um gatinho – e comeu. Eu dei toda a carne pra ele naquele dia. Depois, passava lá todos os dias para dar a ele as sobras de carne das tartarugas e, com o tempo, ele já me conhecia – mesmo que estivesse lá no meio do recinto, vinha trotando igual um cachorrinho sempre que me ouvia chamando por ele.
Sim, eu chamava por ele. Sempre tive o hábito de falar com os animais; eu falo até com as plantas - no outro dia, estava falando com o abacaxi! Eu conversava com ele enquanto jogava a carne e penso que ele se acostumou com a minha voz. pelo menos, acho bastante agradável essa idéia...
Já passei por muita coisa, já fui a muitos lugares. Mas a lembrança desse episódio do tigre é uma das mais doces memórias que tenho da vida. Naqueles dias, eu aprendi que uma foto pode retratar uma estampa, mas que nada se compara com a experiência real.
Os tigres são animais altivos, orgulhosos; as jaulas não são capazes de tirar-lhes o espírito. Eles não têm medo de nós, acho que nem respeito. Nos olhos daquele tigre, naquele nosso primeiro encontro, o que vi foi um certo desafio, ‘você não é melhor que eu, apenas está do outro lado da grade’. Depois, com nossa curta convivência, acho que ganhei um pouco de respeito dele. Gostaria até de acreditar que também um pouco de seu carinho...
Ou, talvez, pra ele eu não fosse mais que aquela que levava um lanchinho...
Seja como for, a curta convivência que experimentei com aquele tigre traz um sorriso ao meu rosto até hoje!
Não existe nada no mundo que se compare ao prazer que se sente diante das manifestações da Natureza, sejam elas animais, vegetais, climáticas. A Natureza é mesmo bela, assim como tudo que há nela. E, para quem souber olhar, vai perceber que os beneficiados seremos sempre nós - nós não temos nada a acrescentar à Natureza, dela, só recebemos.

Um comentário:

renata disse...

olá!!!!adorei esse seu texto...adoro ouvir ou ler histórias, pois elas me fazem mergulhar na cena relatada...pra mim é muito bom. não te conheço, mas imaginei você cara a cara com o tigre...deve ter sido o máximo...esta é com certeza uma experiência que se deve guardar por toda vida...poucos tem essa chance!!! um abraço!!renata.